Pouco espaço de poder das mulheres dificulta o avanço de pautas como a universalização das escolas em tempo integral
As mulheres não aumentaram sua representação política nas eleições de 2 de outubro e continuam tendo pouco espaço no poder. Nesse contexto, como criar políticas públicas que reduzam a desigualdade de gênero? Para complicar, elas compram a ideia de que o cuidado doméstico, trabalho gratuito que reduz a disponibilidade para o mercado de trabalho, é amor, segundo pesquisa realizada pelas economistas Hildete Pereira e Lucilene Morandi(foto), da Universidade Federal Fluminense (UFF).

“Eu diria que é um desafio do tamanho do rio Amazonas”, acrescenta Hildete, pioneira na mensuração do trabalho doméstico travestido de cuidado, não remunerado.
A desigualdade de gênero ajuda a perpetuar o ciclo de pobreza, acrescenta Lucilene Morandi, coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Economia (NPGE) da Faculdade de Economia da UFF. As mulheres ganham em média menos do que os homens e são, em média, mais pobres do que eles, diz ela.
Para as economistas, as próximas legislaturas vão precisar muito da atenção das mulheres brasileiras, porque será necessário brigar por políticas públicas como a universalização da escola em tempo integral, para crianças de zero a 14 anos.
O NPGE é uma das 481 instituições de diversos países do mundo que reivindicam uma atenção maior da ONU naredução da desigualdade de gênero.
Leia a entrevista completa ao portal Integridade ESG com as professoras Hildete Pereira e Lucilene Morandi, sobre desigualdade de gênero e economia.
Qual é a relação entre desigualdade de gênero e economia?
Hildete – A economia se refugia na ideia do que é mercadoria, que vai para o mercado. As mulheres fazem um trabalho gratuito que sempre foi apresentado como um trabalho do amor, ignorado até muito pouco tempo. Só agora tem uma massa crítica de economistas feministas na resistência para quebrar essa espinha dorsal sólida, construída pelas ciências econômicas ao longo de 200 anos.
Trabalho gratuito é o doméstico?
Hildete – Parte do trabalho doméstico é feito pelas donas de casa, gratuitamente, e parte pelas empregadas domésticas. Em todos os censos, desde 1872 até 2010, o trabalho doméstico é a maior ocupação das mulheres brasileiras e tem o pior rendimento no mercado de trabalho.
A participação das mulheres também é baixa na política.
Hildete – As mulheres votam, mas não está aberto para elas o espaço do poder. Sobretudo depois da reforma de 1961, as mulheres se educaram mais, mas o prêmio da educação é maior para os homens. Nenhuma mulher foi eleita em 1945, na terceira Constituição nacional. Tínhamos candidatas em todos os estados, mas nenhuma entrou. Nos partidos políticos, como eles se organizam, as mulheres são marginais.
Lucilene – Um lado importante da desigualdade tem a ver com a questão financeira, acesso das mulheres ao mercado de trabalho, participação econômica. A autonomia econômica está relacionada, inclusive, com a violência contra as mulheres. Pelo fato de não terem autonomia econômica, as mulheres têm menos poder de decisão e menos poder na discussão dentro da família. A autonomia econômica é fundamental. O nó da questão está nos trabalhos não remunerados, que incorporam desde os afazeres domésticos, como cuidar da casa, cozinhar, lavar e passar, a parte dos cuidados com a proteção da vida e criação de bem-estar. Esse trabalho foi cultural, social e historicamente designado às mulheres. Assumir a carga de cuidados custa para elas autonomia, e a economia não vê esse trabalho como trabalho. Para as pessoas irem para o trabalho, estarem disponíveis para trabalhar oito horas por dia, alguém tem que cumprir as funções de cuidado. A discussão sobre o cuidado ficou bem mais evidente na pandemia, quando todo mundo foi para dentro de casa. Cuidar de crianças, idosos, pessoas doentes, cozinhar, lavar e passar. Ficou óbvio que isso demanda tempo e muito trabalho, que não é algo trivial. Mesmo tendo buscado qualificação para se igualar aos homens no mercado de trabalho, elas são vistas de forma diferente. Isso se reflete numa maior pobreza das mulheres, mundialmente, na comparação com os homens. Nas faixas mais pobres, a diferença é menor porque a pobreza iguala todo mundo, mas mesmo quando a gente vê mulheres assumindo cargos que talvez não assumissem há algumas décadas, os salários são menores. Essa questão coloca os cuidados no centro da discussão. Precisamos de políticas públicas.
Como diminuir essa desigualdade?
Lucilene – A intervenção do estado é fundamental na redução dessa desigualdade, tanto em termos de legislação quanto de repensar a redistribuição dos cuidados. A grande questão hoje é redistribuir cuidados não apenas entre homens e mulheres, dentro da família, mas entre família, estado, setor privado e organizações da sociedade. É fundamental mudar o olhar da sociedade sobre o cuidado. Outra questão importante sobre desigualdade de gênero e economia é que, na média, as mulheres são mais pobres que os homens. Elas têm rendimentos, no Brasil, em torno de 30% menores do que os dos homens e quando os casais se separam, os filhos geralmente ficam com as mulheres. Pela ausência do Estado, não há escolas, creches de tempo integral em número suficiente. As pessoas que ficam com as crianças geralmente são as mulheres, e por isso não vão participar completamente do mercado de trabalho. Buscam trabalhos de meio expediente, que podem fazer de dentro de casa, para conciliar com cuidar dos filhos, mas isso as mantém na pobreza. A desigualdade de gênero é ruim para a sociedade como um todo porque ajuda a reproduzir o ciclo de pobreza. Tem questões muito relevantes em relação à desigualdade de gênero versus economia que vão além do preconceito que as mulheres sofrem no mercado de trabalho.
Como fazer essas políticas sem mulheres na política?
Lucilene – Para pensar políticas públicas tem que ter um Congresso diverso. Não só um equilíbrio entre as reperesentações de homens e mulheres, mas também entre pessoas negras e não negras, entre pessoas LGBTQIA+. Enquanto as mulheres não tiverem poder político em todos os espaços de trabalho, terão menos formas de reivindicar os seus direitos.
O que significou a eleição de poucas mulheres em outubro?
Lucilene – As pautas sobre a desigualdade ficaram adiadas por mais quatro anos. Vai ser muito difícil levar essas pautas dentro do Congresso. Algumas coisas até vão passar, mas as pautas mais difíceis, que estão sendo discutidas na América Latina e no mundo inteiro, vão ficar de lado.
O reforço do pensamento da direita vai dificultar?
Hildete – O cenário das mulheres na política não mudou muito. As câmaras de vereadores e prefeituras são de maioria masculina, com apenas 16% de mulheres. Na Câmara Federal, a presença feminina aumentou muito pouco, de 15% para 17,5%. No Senado continuou tudo a mesma coisa: 10% de mulheres e 90% de homens. É um Brasil ainda fechado à representação feminina. As próximas legislaturas vão precisar muito da atenção das mulheres brasileiras com relação ao processo político, porque temos que brigar por políticas públicas. A primeira política que a gente tem que atacar pesado é a escola em tempo integral, de zero a 14 anos.
Hildete – Vamos ter uma pauta ideológica pesada. Nós da Faculdade de Economia da UFF tivemos o privilégio explodir com essa discussão de que o trabalho das mulheres pode ser mensurado, mesmo o trabalho gratuito. Isso possibilitaria botar uma economia chilena dentro do PIB brasileiro. Os homens, em 20 anos de estatísticas, não mudam. Declaram 10 horas em média semanais desses trabalhos gratuitos, e as mulheres saíram de 29 horas para cerca de 19h agora. Hoje existe um grupo grande de universidades com pesquisadoras da economia feminista. Vai sair uma coletânea. ano que vem, com financiamento da ONU. Estamos todas envolvidas nesse florescimento de novos olhares. Nenhum dos teóricos da economia, desde Adam Smith a Karl Marx, fez movimento para explicar porque as mulheres cuidam da humanidade de graça. O único economista que pensou sobre essa questão foi Stuart Mill.
A distribuição de trabalho mudou na pandemia?
Hildete – Eu e a Lucilene fizemos uma pesquisa grande, que vai ser publicada dia 25 de outubro.
Não dá para dar um spoiler?
Hildete – As mulheres também têm projetado entre si a ideia de que o trabalho que elas fazem com a família é um trabalho por amor. Ouvimos 3.600 pessoas entre agosto e setembro de 2021 e ficou evidente que as mulheres também compram o pacote do cuidado: cuidar é amor. Complica a divisão sexual do trabalho. Eu diria que é um desafio do tamanho do rio Amazonas.
Lucilene – A pandemia desarrumou tudo. Estava na hora de rearrumar, mas acho que o rearrumar brasileiro está sendo muito difícil. Mesmo durante a pandemia, vários países deram saltos em conquistas de políticas sociais. O Brasil não. O movimento de participação política mais igualitária na América Latina aconteceu em vários países, como Bolívia, Colômbia, Costa Rica. Quem não está com paridade está muito próximo, como Argentina e Chile. O Brasil está atrás. Não tem nenhuma mudança significativa. A questão dos cuidados tem se tornado uma linha de política pública na Argentina, por exemplo, onde o orçamento tem recorte de gênero. É preciso pensar nas políticas públicas e nos impactos delas, mas também nos efeitos sobre as desigualdades de gênero e de raça. O Brasil está muito longe dessa discussão. Estamos nos apegando a questões que não deveriam nem ser da alçada política, como a religião. Só para fechar, a participação política é fundamental. Além de precisar de mulheres no Congresso, precisamos de pessoas que levem discussões hoje centrais sobre a desigualdade. Uma delas é a questão do corpo feminino. Quem é que manda? É uma questão muitíssimo importante. Mas a gente vai levar isso para a frente? Acho que não. A gente precisa de câmaras que tenham representações políticas diversas. Se a gente não tem um serviço público universal de qualidade, a gente não está discutindo desigualdade, nem de gênero, nem de raça, nem social.
O trabalho remoto e a maior convivência dentro de casa não levam a nada?
Lucilene – Tem ganhos no trabalho remoto, como o fato de não ter o deslocamento, de poder trabalhar de dentro de casa, mas também existem perdas. As pessoas inclusive mudaram de apartamentos em lugares lugar barulhentos para sítios. Na Europa tem gente viajando: um mês fica aqui, outro mês fica acolá, num motorhome. A pandemia fez essa mudança. A gente aprendeu muito rapidamente como se faz e que era possível. Quando a gente olha para as mulheres, tem um complicador no trabalho remoto. Algumas dizem que querem trabalho presencial porque quando ficam em casa são elas que tomam conta dos filhos. Olhando os dados das pesquisas, o trabalho remoto pode ser um retrocesso para parte das mulheres, porque elas vão ficar em casa por causa dos cuidados e não porque trabalhar remotamente é melhor para elas. Por que é um retrocesso? Porque o cuidado continua privado dentro da família e mais especificamente privado para as mulheres. Não tornamos essa questão uma questão comunitária. Sem contar que o trabalho remoto pode ter destruído muitos postos de trabalho.
Hildete – Se permanecerem as tendências vistas na pandemia, vamos precisar de políticas públicas. A escola remota tem problemas. O Brasil foi o país onde as escolas mais demoraram a voltar a funcionar. As nossas crianças, essa geração vai pagar um preço alto. Esse governo que está sendo eleito, que vai ser eleito dia 30 de outubro, vai ter um desafio enorme a enfrentar. Cada um que pense onde vai depositar seu voto, porque isso vai definir muitas questões com relação às políticas públicas necessárias para enfrentar o pós-pandemia.