Latam: “Precisamos de marco regulatório para descarbonizar a aviação”

por | jul 20, 2023

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Enquanto o marco regulatório não vem e o combustível sustentável não é produzido em massa, companhia reduz pegada de carbono por meio do uso de energia elétrica em solo e da aquisição de aeronaves eficientes

Em março deste ano, o grupo Latam realizou o seu primeiro voo internacional utilizando Combustível Sustentável de Aviação (SAF), produzido a partir de óleo de cozinha, gorduras e outros resíduos processados juntamente ao combustível convencional, resultando em um produto final com baixo teor de CO2. A aeronave partiu da Espanha rumo à América do Norte. Quatro meses depois, chegava a Fortaleza, vindo da França, a primeira aeronave abastecida com SAF: era o novo Airbus A320neo, incorporado à frota da empresa. Foram dois passos importantes rumo à meta da neutralidade de carbono até 2050, aos quais se somaram dois reconhecimentos recentes: a classificação como única companhia aérea da América do Sul no ranking de Sustentabilidade Corporativa (CSA) da Standard & Poor’s (S&P Global), com melhor desempenho em sustentabilidade no continente americano; e a inclusão no The Sustainability Yearbook, de 2023, como única companhia aérea do continente.

Apesar dos avanços, a pouca quantidade de combustível sustentável voltado para o setor da aviação no mundo ainda é limitada.

“É necessário que haja um marco regulatório da descarbonização da aviação, com regras claras e coerentes, além de incentivos e tributação adequados”, enfatiza a diretora de Assuntos Corporativos, Regulatórios e Sustentabilidade, Maria Elisa Curcio, ao Integridade ESG.

Diante deste cenário, a companhia tem participado de discussões sobre políticas públicas, enquanto utiliza ferramentas que já estão disponíveis para reduzir a pegada de carbono, como o uso de energia elétrica em solo e a aquisição de aeronaves com motores mais eficientes, a exemplo do A320neo. Além disso, até o fim de 2023, a Latam vai eliminar 100% dos plásticos de uso único, substituindo-os por itens compostáveis, recicláveis ou certificados, revela Curcio.

Confira a entrevista completa.

Integridade ESG Quando e por que o grupo decidiu iniciar essa jornada até colher esses importantes reconhecimentos?

Maria Elisa Curcio — Temos ciência do impacto do nosso negócio ao meio ambiente. Por isso, buscamos formas de reduzi-lo, e, mais do que isso, como líderes de mercado, sabemos da nossa capacidade e responsabilidade de influenciar todo o setor aéreo da região rumo a práticas mais sustentáveis. O processo do Capítulo 11, pelo qual passamos entre 2020 e 2022, transformou a Latam em uma companhia muito mais competitiva e eficiente. Além disso, foi uma oportunidade de revermos nossas diretrizes e estabelecer uma nova estratégia que considerasse a sustentabilidade no centro do nosso negócio, com metas claras e alcançáveis para o curto, médio e longo prazos.. Em maio de 2021, renovamos nossa estratégia de sustentabilidade com ações e metas organizadas em três pilares: Mudanças Climáticas, Economia Circular e Valor Compartilhado, todos baseados nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) e atendendo às necessidades climáticas, sociais e de saúde.

Eco Kits de Viagem na cabine Premium Business feiros com bambu, cana-de-açúcar e papel kraft já reduziram o uso a bordo de 1200 toneladadas de plástico

No pilar de Economia Circular, estabelecemos o compromisso de eliminar plásticos de uso único até 2023 e nos tornar uma companhia zero resíduos para aterro sanitário até 2027. No pilar de Mudanças Climáticas, a meta é reduzir e compensar o equivalente a 50% das emissões de CO2 das emissões domésticas até 2030 e ser uma companhia 100% carbono neutro até 2050. Por último, em Valor Compartilhado, temos o compromisso de ampliar nossa capacidade colocando à disposição da América do Sul toda a experiência logística e conectividade da companhia em prol do transporte gratuito de pessoas, animais e cargas em emergências de Saúde, Meio Ambiente e Desastres Naturais. Essa estratégia tem se mostrado cada vez mais efetiva, com reconhecimento, inclusive, das autoridades brasileiras. Em junho deste ano, por exemplo, fomos reconhecidos pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) como a companhia aérea com melhor desempenho em Sustentabilidade no Brasil em 2022 pelo Programa Sustentar, um prêmio criado pela agência reguladora para incentivar o desenvolvimento e aprimoramento de práticas sustentáveis pelos operadores aéreos brasileiros e reforçar o compromisso do setor com o Meio Ambiente e a Sustentabilidade.

Integridade ESG A Latam afirma que pretende reduzir em 50% as emissões domésticas de carbono até 2030, estabelecendo um caminho para a neutralidade até 2050. De que forma isso está sendo feito?

Maria Elisa Curcio — O primeiro caminho é a compensação das emissões por meio da conservação de ecossistemas estratégicos e de alto valor ambiental. O segundo é a própria diminuição das emissões por meio de mais eficiência operacional e melhores práticas, incorporação de aeronaves mais eficientes e aquisição de combustíveis mais sustentáveis, conforme a disponibilidade do mercado. O principal desafio para a descarbonização do setor de aviação é a disponibilidade de Combustíveis Sustentáveis de Aviação (SAF), dado que atualmente a quantidade disponível em âmbito mundial ainda é limitada, sendo necessário que haja um marco regulatório da descarbonização da aviação, com regras claras e coerentes, além de incentivos e tributação adequados. Neste cenário, temos atuado com diferentes stakeholders para contribuir na definição de políticas públicas que visem desenvolver a produção do SAF de qualidade, em escala e dentro dos critérios técnicos exigidos.

“É necessário um marco regulatório da descarbonização da aviação, incentivos e tributação adequados. A América do Sul conta com grande potencial para produção em termos de recursos naturais e expertise. No Brasil, estamos participando das discussões sobre a criação de políticas públicas em relação ao tema e buscando parceiros na área.”

Enquanto essas discussões acontecem, avançamos na utilização de ferramentas sustentáveis já disponíveis. Em nosso pilar de mudanças climáticas, a Latam é a primeira companhia aérea do Brasil a utilizar energia elétrica em operações de solo, com um investimento de mais de R$ 30 milhões e parceria com a Real Aviation e a BH Airport. Desde junho de 2022, a operação de Ground Handling de pelo menos 50% dos nossos voos no aeroporto de Belo Horizonte/Confins é realizada por equipamentos movidos a energia elétrica em vez de diesel, deixando de emitir 114 toneladas de CO2 por ano. Esse volume corresponde ao consumo equivalente de CO2 dos equipamentos movidos a diesel usados para atender a nossa operação atual no aeroporto mineiro.

Integridade ESG — De que forma a Latam tem aumentado o uso de combustíveis mais sustentáveis, apesar da pouca disponibilidade de SAF?

Maria Elisa Curcio — Também é importante destacar os investimentos que fizemos em tecnologias mais eficientes, como o DPO (Descent Profile Optimisation), software que reduz em mais de 60 mil toneladas a emissão anual de CO2 ao otimizar a trajetória de pouso das nossas aeronaves Airbus A320 equipadas com essa tecnologia. Quanto ao uso de combustíveis mais sustentáveis (SAF), esse é um dos grandes desafios enfrentados pelos grupos que buscam promover o seu uso. A América do Sul conta com grande potencial para a produção de SAF em termos de recursos naturais e expertise para fazer contribuições significativas à mudança climática. Diante disso, seguimos trabalhando nessa frente, que requer a cooperação de diversos setores, com a proposta de estimular a produção e uso do combustível sustentável no segmento da aviação. No Brasil, inclusive, estamos participando ativamente das discussões que envolvem a criação de uma política pública em relação aos combustíveis sustentáveis de aviação e também estamos buscando parceiros na área.

Primeiro voo internacional realizado pela Latam Cargo com combustível obtido a partir de óleo de cozinha, gorduras e resíduos processados juntamente ao combustível convencional, resultando em um produto com baixo teor de CO2

Em março de 2023, realizamos o nosso primeiro voo internacional com o SAF. Já em maio, como parte das comemorações pelo Dia das Mães, a Latam Cargo, em parceria com a Kuehne+Nagel e a Elite Flower, comprou mais de 25 mil litros de SAF para reduzir o equivalente a todas as emissões geradas por um voo cargueiro na rota Bogotá-Miami, no feriado, quando foi transportada uma grande quantidade de flores, sobretudo rosas.

Integridade ESG — O projeto de conservação e compensação nos ecossistemas icônicos da América do Sul contempla alguma região do Brasil?

Maria Elisa Curcio — No Brasil, atualmente estamos trabalhando na escolha de um projeto local com o qual tenhamos sinergia e em breve faremos esse anúncio.

Integridade ESG — Poderia citar alguns resultados já obtidos no continente?

Maria Elisa Curcio — Nós nos unimos ao projeto CO2BIO, uma iniciativa de preservação da Orinoquia colombiana da Fundação Cataruben, promovida pelo Programa de Riqueza Natural da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Esse é o primeiro projeto de conservação de ecossistemas icônicos ao qual o Grupo Latam Airlines se associa, contribuindo com a meta de ser um grupo neutro em carbono até 2050, objetivo principal do pilar de mudanças climáticas da estratégia de sustentabilidade do grupo: “Um destino necessário”. A iniciativa procura conservar a biodiversidade e as savanas inundáveis localizadas nos departamentos de Casanare, Arauca, Vichada e Meta, pegando impulso na implementação de incentivos econômicos para a gestão de soluções climáticas que são implementadas com o apoio da comunidade. Assim, buscamos aprimorar a gestão dos recursos naturais por meio de atividades produtivas que reduzam o desmatamento e a degradação de florestas, áreas úmidas e pastagens, garantindo a conservação da flora e da fauna.

As savanas inundáveis são ecossistemas essenciais que permitem conter o impacto ambiental, pois são compostas por grandes extensões de planícies intertropicais com menor capacidade de absorção de água da chuva, transformando sua superfície em uma área temporariamente alagada, que oferece benefícios ambientais, como a regulação do ciclo de nutrientes, assim como o ciclo hídrico superficial, o controle da erosão, a produtividade do solo e a retenção de CO2.

A América Latina possui mais de 250 milhões de hectares de savanas intertropicais em países como Venezuela, Brasil, Guiana, Bolívia e Colômbia. Só na Colômbia, a região da Orinoquia contribui com 17 milhões de hectares, dos quais 75% são cobertos por ecossistemas de savana. Ao contrário de outros projetos de compensação, o CO2BIO se destaca pelos benefícios ambientais, sociais e econômicos que gera para as comunidades locais vinculadas ao projeto, o que contribui para sua sustentabilidade no longo prazo. Hoje, são 191 famílias comprometidas com a proteção desse ecossistema estratégico que conserva mais de 200 mil hectares onde vivem mais de 2.284 espécies e que possuem certificação para comercializar créditos de carbono. Essa iniciativa é uma oportunidade única de integrar capacidades e recursos em ações significativas de mitigação das mudanças climáticas que se somam aos objetivos traçados em conjunto como sociedade. Temos como meta compensar 100% da nossa operação aérea e terrestre na Colômbia e promover o seu desenvolvimento para que o CO2BIO seja um projeto competitivo de acesso ao mercado voluntário de carbono internacional.

Integridade ESG — Como funciona o Programa 1+1 Compensar para Conservar, junto aos clientes corporativos? Como se dá o mecanismo do 1+1, na prática?

Maria Elisa Curcio — Os nossos clientes corporativos já têm a possibilidade de fazer a compensação da pegada de carbono gerada em seus voos, sendo que a Latam iguala o valor colocado pelo cliente. Outra ação de compensação que já está sendo realizada é o Sextas Compensam: desde março de 2022, quando em todas as sextas-feiras compensamos as emissões geradas em nove rotas domésticas, sendo aqui no Brasil os voos de passageiros na Ponte Aérea Rio de Janeiro/Santos Dumont-São Paulo/Congonhas e a rota de cargas Brasília-Belém. Essas rotas partem de regiões estratégicas, como Brasília, um dos nossos principais hubs, e Belém, região importante por seu ecossistema.

Integridade ESG — Quando a companhia pretende implantar a separação do lixo a bordo, a fim de possibilitar a reciclagem de plástico, papel, alumínio e vidro?

Maria Elisa Curcio — São iniciativas que estão em análise para implementação na operação brasileira e que requerem uma série de estudos para o estabelecimento de processos que garantam o descarte correto, com certificação. Enquanto isso, em 2022, realizamos a compensação ambiental de 92 toneladas de resíduos gerados a bordo de nossos voos com origem e/ou destino a 12 aeroportos brasileiros sem serviço de coleta seletiva, em parceria com a Eureciclo. Esse volume corresponde à estimativa de resíduos que a companhia gerava em períodos pré-pandêmicos a bordo de seus voos nessas localidades. Também fechamos duas parcerias sociais para projetos de upcycling, ou seja, reutilização criativa, de uniformes usados, por meio da parceria com a Revoada e a Costurando Sonhos Brasil, ambos negócios de impacto social, que atuam na transformação de 30 toneladas de insumos têxteis da Latam desde 2022. Além do reaproveitamento dos uniformes, as parcerias desempenham um papel importante para o empoderamento feminino, gerando renda para mulheres em situação de vulnerabilidade social de estados como o Rio Grande do Sul, no caso da Revoada, e São Paulo, com a Costurando Sonhos. Por fim, começamos a oferecer aos clientes os Eco Kits de Viagem na cabine Premium Business de voos internacionais. Esses kits contam com materiais mais sustentáveis, como escovas de bambu com tampa de cana-de-açúcar e embalagens em papel kraft que reduziram em 1.200 toneladas o uso de plásticos das operações de bordo da Latam.

Integridade ESG — Quais outras ações a companhia pretende implantar ainda em 2023 na direção da sustentabilidade?

Maria Elisa Curcio — Até o fim de 2023, vamos eliminar 100% dos plásticos de uso único de nossas operações, com materiais a bordo compostos por itens compostáveis, recicláveis ou certificados.Também estamos atuando para que o programa de reciclagem a bordo, já implementado em alguns países, seja expandido em todas as rotas domésticas do grupo Latam, inclusive no Brasil. Da mesma forma, nosso programa de upcycling de uniformes está sendo expandido para todos os países em que atuamos. Por último, estamos no caminho para que todos os Lounge Latam nos aeroportos sejam 100% sustentáveis.

Integridade ESG — A agenda ESG no setor do turismo ainda engatinha, sendo caracterizada por ações isoladas. Na sua opinião, o que poderia ser feito para que uma agenda mais abrangente e articulada fosse iniciada, abraçando segmentos, como agências e operadoras de viagem, hotéis e resorts?

Maria Elisa Curcio — Cumprir uma agenda de sustentabilidade na indústria de aviação e turismo é um desafio pela complexidade da sua cadeia. Como companhia aérea, dependemos de muitos elos para garantir a eficiência operacional. Por outro lado, vejo que a forma como a Latam lida com a questão da sustentabilidade pode ser um caminho. Se todas as empresas do setor se comprometerem com as ferramentas já disponíveis no mercado e estabelecerem estratégias concretas com metas de curto, médio e longo prazos, lá na frente haverá uma convergência natural de todo o setor. Foi dessa forma que transformamos a Latam em uma das aéreas mais envolvidas não só na agenda de combate às mudanças climáticas, mas também no estabelecimento de um modelo de economia circular e na promoção do desenvolvimento social das comunidades onde atua ao compartilhar seu maior valor, o avião, para encurtar distâncias e fazer a diferença para quem mais precisa.

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