A terceirização e a lacuna ESG nas vinícolas

por | mar 1, 2023

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Mapeamento de fornecedores deve ser realizado na primeira fase de implantação de uma agenda sustentável em empresas

O recente escândalo de trabalho análogo à escravidão, flagrado em três das maiores vinícolas brasileiras, coloca em evidência uma etapa fundamental da implementação de uma agenda ESG no mundo dos negócios: o mapeamento dos stakeholders.

As vinícolas envolvidas nas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi — divulgam iniciativas e respeito às normas ESG em seus sites oficiais. Elas são alvo das denúncias que levaram ao resgate de cerca de 200 trabalhadores oriundos da Bahia e contratados para a colheita da uva em Bento Gonçalves.

A Salton declara estar “empenhada em integrar os aspectos ambientais, sociais e de governança em todas as etapas do processo produtivo e junto aos diferentes stakeholders que formam a nossa cadeia de valor”. Por sua vez, a Aurora garante em seus canais de comunicação aderir ao tripé composto pelos pilares do desenvolvimento econômico, responsabilidade social e gestão ambiental, informando que a “responsabilidade social se faz presente em nossas iniciativas de cidadania, no engajamento das partes interessadas e na geração de empregos”.

Para a professora FGV EBAPE, Carmen Migueles, as más condições de trabalho constituem a regra da terceirização da forma como é feita no país: “O trabalho digno e justo está na Agenda 2030 da ONU, mas o Brasil tem uma das mais altas taxas de acidente de trabalho do mundo por causa dessa precarização”.

O diretor executivo da Cooperativa Vinícola Garibaldi, Alexandre Angonezi, ministrou a palestra “Estratégias ESG: gerando valor e competitividade nas vinícolas “, realizada na programação da feira Envase Brasil, em abril do ano passado. Durante o encontro, compartilhou o case de gestão da empresa, em que destacou suas práticas “ambientais, sociais e de governança.” 

Mapear criteriosamente os stakeholders internos e externos constitui uma das tarefas iniciais de uma empresa interessada em seguir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, explica ao Integridade ESG Loraine Bender, consultora especializada em ESG com mestrado em Meio Ambiente Urbano e Industrial pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro titular da Comissão de Direito Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/PR).

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O mapeamento dos stakeholders está inserido na primeira etapa de uma agenda ESG, a do diagnóstico. Pode até ter outro nome, como verificação de fornecedores, mas deve ser feito. Esse caso nos traz um alerta. Talvez as empresas tenham mapeado o G e o E, mas não o risco do trabalho infantil e do trabalho escravo. Trata-se de um tema muito sensível. No caso da reciclagem, sabemos que fornece renda para milhares de famílias e muitas vezes há crianças trabalhando com os pais há anos”, afirma.

Os gestores devem conduzir o mapeamento tanto dos stakeholders internos quanto dos externos nessa fase do diagnóstico, mas sem atropelos, detalha Loraine.

“Os stakeholders externos são aqueles que trazem a matéria-prima, fazem a segurança, o transporte, os recursos humanos, o marketing, a assessoria de imprensa. Os internos são os funcionários, gerentes, sócios etc. Nesse processo, se verifica se há alguma discrepância ou algo inadequado. Existem mecanismos para escolher fornecedores ‘mais verdes’ ou ‘mais sociais’, que incluam minorias em sua cadeia”, exemplifica, acrescentando que o diagnóstico deve ser feito de maneira gradual e profunda.

As vinícolas, que faturaram mais de R$ 1 bilhão na última safra (somente a Aurora negociou R$ 746 milhões em 2021), alegaram desconhecer a situação dos trabalhadores terceirizados, que cumpriam jornadas de mais de 15 horas, viviam em alojamento precário e narraram ter sofrido torturas com máquinas de choque e spray de pimenta. No entanto, trata-se de uma obrigação legal: a responsabilidade solidária.

A professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV EBAPE), Carmen Migueles, cita a obrigação legal das empresas de verificarem as condições de trabalho dos terceirizados.

É obrigada a saber, sim. Não existe isso de ‘eu não sabia’. Tanto que a taxa de acidente de trabalho do terceiro conta como taxa normal para uma empresa. Existem penalidades previstas. A reforma trabalhista facilitou a terceirização, mas colocou obrigações, como a proibição de uso de equipamentos de trabalho de qualidade inferior pelos terceirizados”, ressalta.

Para a autora do livro “O elo perdido: cultura, produtividade e competitividade”, o caso dos maus tratos na Serra Gaúcha constitui uma demonstração de como o emprego da terceirização no Brasil tem gerado grandes distorções e agravado a precarização do trabalho no país.

“A terceirização em si não é o problema. A modalidade surgiu nos anos 1980 porque estava difícil administrar planos de saúde imensos. O processo do streamline aconteceu no mundo inteiro e gerou empresas especialistas muito melhores do que as originais. Porém, estamos falando do Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, com uma economia produtora de commodities, que não valoriza capital humano, inovação nem qualidade nem serviço. O que aconteceu? Uma precarização nas empresas terceiras. Vemos isso nas empresas que afirmam ter o ESG na veia e seguir o Pacto Global da ONU, mas que contratam empresas terceiras por preço e fingem que não veem o problema. No final das contas, o que vale mesmo é preço”, analisa.

Para a consultora especializada em ESG, Loraine Bender, o caso de Bento Gonçalves nos traz um alerta: “As empresas devem mapear em seus diagnósticos o risco do trabalho infantil e do trabalho escravo.Trata-se de um tema muito sensível. No caso da reciclagem, sabemos que fornece renda para milhares de famílias e muitas vezes há crianças trabalhando com os pais há anos”.

A especialista classifica a concorrência entre as terceirizadas como “canibal”. Para ela, o escândalo do trabalho escravo nas vinícolas brasileiras não representa uma exceção.

“É a regra. A terceirização da forma como é feita no Brasil foi a reinvenção da senzala. As empresas brasileiras fazem isso na maior cara de pau. O trabalho digno e justo está na Agenda 2030 da ONU, mas o Brasil tem uma das mais altas taxas de acidente de trabalho do mundo por causa dessa precarização. O problema não é a terceirização, e sim essa nossa visão que não dá importância ao desenvolvimento humano. Isso tem a ver com a nossa baixa competitividade e baixa produtividade e com o retorno financeiro de curto prazo que norteia a gestão dos negócios. Temos ainda uma mentalidade muito tacanha e atrasada”, aponta.

Os negócios envolvidos terão que lidar com a perda de posicionamento da marca, alerta a pesquisadora.

“Vão perder em posicionamento de marca, em posicionamento ESG. O que economizaram com esse contrato de terceirização não vai pagar os danos à marca. Estamos diante de um desafio clássico da governança híbrida, quando há duas empresas cooperando para uma entrega de valor. Não sabia da situação por que? Porque não estava gerenciando e não foi ver”.

Neste momento, o consumidor brasileiro deve exercer seu papel decisivo no mercado, frisa.

“É aí que entra o papel do consumidor consciente de ‘punir’ as marcas que agem assim. A Nike mudou radicalmente quando o consumidor europeu se recusou a comprar os produtos de uma empresa que, na época, usava mão de obra escrava no Vietnã. O ESG só caminha quando o consumidor cobra das empresas um comportamento adequado. Agora, se esse consumidor escolhe um produto no mercado feliz da vida porque é mais barato por ser feito às custas de trabalho escravo, não tem solução”, conclui.

Enquanto Migueles frisa o papel do consumidor, Loraine acredita no avanço dos marcos regulatórios para que o ODS 8, que prevê Trabalho Decente e emprego pleno e produtivo para todos, seja alcançado no país.

“A cultura do ESG no Brasil está começando agora. Algumas empresas estão bem avançadas e são fornecedoras de outras que mapeiam seus stakeholders. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ilustra esse progresso. Começou devagar, como uma obrigação externa, vinda do mercado europeu. Depois se tornou uma obrigação legal. E o que temos hoje? A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) acaba de publicar as regras para os cálculos das sanções administrativas por violação da LGPD”, comenta a consultora Loraine Bender, citando os Projetos de Lei que tramitam na Câmara e no Senado, instituindo selos ASG e prevendo vantagens para as empresas certificadas em processos licitatórios.

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